Leitura e Neurociências: Reflexões sobre a Alfabetização


O presente artigo tem por objetivo analisar algumas descobertas recentes das neurociências e sua relação com a leitura e a alfabetização. Em termos de mapeamento neurofuncional do encéfalo, evidências têm revelado que três áreas do cérebro, especificamente, estão envolvidas na leitura: regiões occipito-temporal, têmporo-parietal e frontal, todas no hemisfério dominante para linguagem, usualmente o esquerdo (ver revisão de SHAYWITZ, 2003).


A primeira região, a occipito-temporal esquerda, tem sido denominada de área “da forma da palavra” ou “da forma da letra” (DEHAENE, COHEN, SIGMAN, & VINCKIER, 2005). É fundamental para a percepção das diferenças entre letras, por exemplo, que “b” e “d” são distintas. Observa-se que toda a percepção anterior à aprendizagem de letras e números não faz distinção de orientação espacial, afinal um gato continua sendo ele mesmo independentemente de estar voltado para a esquerda ou para a direita. Porém, ao adentrar no universo das letras e números, o indivíduo precisa desenvolver uma nova forma de percepção da realidade em que a orientação espacial ocorre de maneira qualitativamente diferente. Para tanto, essa região occipito-temporal esquerda passa a ser ativada para embasar tal percepção.


A partir dessa discriminação, são ativadas regiões têmporo-parietais do hemisfério dominante, relacionadas à conversão das letras em sons. É interessante que, mesmo para leitura silenciosa ou em tarefas de compreensão de textos em que não há necessidade de verbalizar o que está sendo lido, há ativação dessa região, ou seja, é um processo natural, durante a leitura, a transformação de sinais gráficos em sinais fonológicos. Tal processo reflete o uso da linguagem oral, que é primária, como base para o processamento da linguagem escrita, secundária.


A terceira região consistentemente relacionada à leitura é a região frontal, que pode ser associada à ativação dos planos motores para produção de fala ou produção de escrita. Além dessas três regiões especificamente envolvidas no processo de leitura, muitas outras podem ser ativadas dependendo da tarefa requerida. Por exemplo, redes com ampla distribuição são ativadas em função da demanda de compreensão que possa estar envolvida; redes parietais podem ser ativadas em função da necessidade de selecionar informação visual.


De modo conjunto, tais evidências sugerem que: a) a leitura não é um processo unitário, mas envolve distintas habilidades; e b) algumas dessas habilidades são mais específicas a esse processo, outras são mais gerais, como a compreensão, pois tanto a compreensão auditiva quanto a de leitura ativam regiões semelhantes. Logo, alfabetizar envolve conhecer todas essas habilidades e fomentar cada uma delas de maneira adequada e equilibrada.


Outra evidência consistente a partir de estudos de neuroimagem relaciona-se aos padrões de ativação apresentados por pessoas com dificuldades de leitura. Mais especificamente, disléxicos têm apresentado hipofuncionamento das duas regiões posteriores (regiões temporo-occipito-parietais), além de um hiperfuncionamento frontal que aumenta com o passar da idade. Tais dados sugerem que as regiões de percepção das formas das letras e, especialmente, de conversão entre letras e sons estão funcionando de forma menos ativa em tais sujeitos. A hiperativação frontal tem sido relacionada ao aumento da necessidade de controlar os processos de leitura - visto que os processos típicos não estão sendo realizados, é preciso maior controle consciente e voluntário para dar conta da tarefa. Ou seja, na dislexia há um funcionamento neurológico diferente, com déficits relacionados principalmente à relação letra-som (SHAYWITZ, 2003).


Estudos com grande número de participantes confirmam que, em crianças e adolescentes disléxicos, o déficit fonológico é o marcador mais robusto e específico (RAMUS et al., 2003). Em relação à intervenção, estudos de neuroimagem com disléxicos, antes e após atividades fônicas, têm mostrado que os mesmos melhoram em termos comportamentais (isto é, em termos de desempenhos em leitura e escrita) e têm seus padrões de ativação encefálica modificados com a intervenção, promovendo a ativação das regiões que estavam hipoativas (ex.: SIMOS et al., 2002; TEMPLE et al., 2003).


Com base nesses achados, diversos países têm recomendado o uso de instruções fônicas não apenas para a intervenção em transtornos de leitura, mas também para a alfabetização regular, incluindo, por exemplo, a Finlândia, em que instruções fônicas foram introduzidas já na década de 1970 (KORKEAMÄKI; DREHER, 1993) e, mais recentemente, diversos outros o como Estados Unidos (NATIONAL READING PANEL, 2000) e França (OBSERVATOIRE NATIONAL DE LA LECTURE, 1998). Esperamos que tais achados também ajudem a nortear políticas públicas brasileiras relacionadas à educação.


Alessandra Gotuzo Seabra Psicóloga

SME (N:9 Janeiro, 2017)